Homeschooling: medida equivocada e absolutamente fora de tempo
A Educação Domiciliar (ou homeschooling), prática das crianças e jovens serem educadas em casa, por suas famílias, e não em instituições formais (escolas), foi aprovada na Câmara dos Deputados, ontem (18) e teve todos os 11 destaques rejeitados nesta quinta (19), seguindo, portanto, para aprovação no Senado Federal, ainda sem data. Essa foi a única temática inserida na agenda prioritária do governo de Jair Bolsonaro em 2021, mesmo diante de todas as adversidades enfrentadas pela Educação Básica durante a pandemia.
Desde 2001, foram apresentadas diversas proposições acerca da Educação Domiciliar. Atualmente, o Projeto de Lei 3179/12, que estava parado desde 2019, já está com a relatoria definida. A esse PL, mais sete projetos são apensados, dos quais um deles é de autoria do próprio Governo Federal.
A opção de educar as crianças sob a responsabilidade da família é defendida atualmente por quem afirma que é direito dos pais escolherem a Educação para seus filhos. Entre os defensores, estão aqueles que veem essa prática como protetora de supostas ideologias transmitidas em sala de aula e de possíveis violências escolares.
Vale destacar, portanto, que a Educação Domiciliar não é capaz de atender aos três objetivos da Educação, dispostos na Constituição Federal em seu artigo 205: “pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. A restrição do convívio com crianças e adultos fora do círculo íntimo da família, a ausência de ideias e visões de mundo contraditórias as que são expostas em casa, bem como de troca de experiências e interações mais diversas, inibem o pleno desenvolvimento dessas crianças e jovens. Respeito às diferenças, aprendizado e trabalho coletivos, debate respeitoso, autorregulação, tolerância às visões religiosas e ideológicas distintas, para citar apenas algumas habilidades fundamentais e esperadas do processo educacional, são dificultadas ou até inviabilizadas pela prática.
Além das questões relativas à formação das crianças e jovens em idade escolar, há outro imperativo: o do melhor uso dos recursos públicos e do esforço governamental. Sobretudo agora, depois de quase dois anos de escolas fechadas e ensino remoto que afetaram tão profundamente a aprendizagem e a saúde mental dos alunos. Direcionar recursos públicos, financeiros e de gestão para atender a 0,04% dos estudantes brasileiros, segundo estimativa da Associação Nacional de Ensino Domiciliar, evidencia, mais uma vez, que estamos diante de um governo que não tem a melhoria da qualidade do ensino como compromisso de atuação.
SUBSÍDIOS TÉCNICOS
A legalidade da Educação Domiciliar varia muito de país para país. Há locais que permitem a prática sob regulação (como Austrália, Canadá, Estados Unidos, Inglaterra e França) e países que a proíbem (como Alemanha, Argentina, Coreia do Sul, Holanda e Uruguai). No entanto, é importante olhar para a questão sob o prisma da realidade brasileira.
Por aqui, em 2018, o Supremo Tribunal Federal declarou que a Educação Domiciliar não é permitida. O entendimento da maioria foi que essa prática não é inconstitucional, mas prevaleceu o entendimento de que a Educação Domiciliar é proibida dado que não existe uma lei que a regulamente. Caso exista essa regulamentação, para ser considerada constitucional, a lei deverá prever também o acompanhamento dos rendimentos dos alunos educados em casa, por meio de avaliações pedagógicas, sob responsabilidade das secretarias de Educação.
Isto posto, é importante reforçar que o Todos Pela Educação é contra qualquer incentivo à Educação Domiciliar. Torná-la uma prioridade na gestão educacional é equivocado e o assunto não deveria ser um tema de debate do Congresso Nacional neste momento. Afinal, passa longe do que precisa ser feito para melhorar a Educação no Brasil e evidencia uma inversão de prioridades do Governo Federal.
Trata-se de uma medida voltada para pouquíssimas famílias. Os números vêm aumentando nos últimos anos e a regulamentação da matéria poderá criar estímulos adicionais para sua adoção. Ainda assim, significa um percentual modesto quando comparado aos milhões de alunos na Educação Básica que precisam urgentemente de melhorias na qualidade do ensino, principalmente com a pandemia – e que também serão afetados pela regulamentação da Educação Domiciliar, dado que muitos especialistas defendem que há riscos em legalizar a prática.
Algumas questões devem ser levadas em conta na reflexão sobre o tema e sobre a priorização dada neste momento:
- A ideia do homeschooling parte do pressuposto de que a Educação escolar se limita ao ensino do que está no currículo, com avaliação periódica em momentos específicos da trajetória curricular. Ignora-se, assim, que a Educação escolar vai muito além disso, como sugere o Parecer 34/2000 da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação (CEB/CNE), que deixa evidente a importância da socialização com outras crianças e jovens e a exposição ao diverso e ao contraditório como aspectos fundamentais de seu desenvolvimento. A escola é o melhor ambiente para que isso aconteça. Vale lembrar que a Constituição estabelece que a Educação não tem apenas função técnica e, portanto, deve ser tratada de forma mais sistêmica – incluindo elementos fundamentais como formação para a cidadania, compartilhamento de valores comuns e pluralismo de ideias.
- É inadmissível que, para o Governo Federal, essa seja a prioridade do momento na Educação. Mais do que isso, Governo e Congresso devem estar dedicados a outras prioridades na Educação Básica, especialmente às agendas estruturantes e emergenciais – pautas que sofreram forte desaceleração em 2020 devido à pandemia e aos problemas de gestão do MEC, conforme mostrou o balanço anual divulgado em fevereiro pelo Todos. Essas agendas incluem governança e gestão das redes de ensino, financiamento da Educação, políticas docentes e Primeira Infância.
- Além disso, tal projeto não faz parte das medidas de enfrentamento à pandemia para a Educação. As secretarias de Educação estão desamparadas tanto no âmbito financeiro quanto de planejamento do acesso à tecnologia, ensino remoto, retorno às aulas, medidas de redução à evasão escolar e o aumento de violência doméstica. É escancarado o desvio dos esforços do Governo Federal do que deveria ser prioritário no mandato. Estudos recentes (ver “Referências”), realizados em países europeus que já regularizaram o homeschooling mostram relatos, durante a pandemia, de efeitos negativos da prática.
- Regulamentar a prática de Educação Domiciliar não afeta apenas os atuais adeptos da prática, mas também os milhões de estudantes que hoje não o fazem, especialmente os mais vulneráveis. O risco é regulamentar a Educação Domiciliar para um pequeno grupo e a prática abrir espaço para comportamentos de risco na família, como abandono escolar, violência doméstica e exposição às mais diversas situações de privação e estresse tóxico, que hoje são diretamente enfrentadas pelas escolas.
- Por fim, não existem evidências na literatura internacional de que, quando controlado pelo nível socioeconômico do aluno, crianças e jovens em homeschooling têm desempenho escolar melhor em relação a um estudante em Educação formal. Isto é, não há evidências que indiquem que uma criança aprenderia mais na Educação Domiciliar do que na escola.
Ao analisar aspectos de natureza legal, o Parecer 34/2000 do CNE menciona, por exemplo, o princípio com base no qual o ensino deve ser ministrado relativo à “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola” (art. 208, I). Ao mesmo tempo, “a Constituição Federal aponta nitidamente para a obrigatoriedade da presença do aluno na escola, em especial na faixa de escolarização obrigatória (…), instituindo para o Poder Público a obrigação de recensear, fazer a chamada escolar e zelar para que os pais se responsabilizem pela frequência à escola” (CF, art. 208, § 3º).
Abordando a finalidade da Educação de promover “o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (LDB, art. 2º), o parecer da CEB/CNE conclui que a Educação é dever do Estado e da família, “porque a família, só ela, jamais reunirá as condições mínimas necessárias para alcançar objetivos tão amplos e complexos”. Afirma também que a solidariedade humana e a tolerância recíproca, que fundamentam a vida em sociedade, “não deverão ser cultivados no estreito (no sentido de limitado) espaço familiar”.
Sob todos os aspectos aqui apontados, simplificar a discussão ao argumento de que outros países admitem o homeschooling omite diretrizes estruturantes da Educação Básica, bem como desconsidera as condições sociais e de capacidade estatal no Brasil.
Diante de todas essas evidências, o Todos Pela Educação é contrário à aprovação do PL 3179/12, que regulamenta e aprova a Educação Domiciliar no Brasil. Defende ainda que, caso a regulamentação avance, seja possível explicitar os casos excepcionais que justificam a adoção do homeschooling e as condições para que assegure o acompanhamento, pelos sistemas educacionais, dos estudantes educados em casa. Nesse caso, sem incentivar a Educação Domiciliar, devem ser previstas as situações especiais e restritas que justifiquem a adoção da prática, como, por exemplo, para crianças que estão fora do país de origem de forma transitória ou diante de risco à integridade física e emocional das crianças, apenas nos casos em que o poder público não puder oferecer alternativas que preservem os direitos das crianças e jovens.
O Todos reafirma a defesa constitucional e meritória do papel da escola na formação e socialização de jovens e crianças e as limitações estruturais de monitoramento e regulação de tal prática. Em vez de propor o homeschooling no País, caberia ao Governo Federal liderar a inserção de temas estruturantes para a Educação Básica, essenciais para alcançarmos uma Educação Básica de qualidade, especialmente frente ao cenário atual pandêmico.
Referências
– Immediate Psychological Effects of the COVID-19 Quarantine in Youth From Italy and Spain