As possibilidades para a Educação e o Fundeb
A PEC do novo Fundeb, aprovada pela Câmara dos Deputados e encaminhada ao Senado, é um extraordinário avanço. Não obstante, artigos recentes têm exposto críticas à sua pertinência com preocupações relativas à saúde fiscal do País e questionamentos acerca da eficácia do aumento de investimento em Educação. Dada a complexidade do tema, é preciso descer nos detalhes.
Primeiro, vale relembrar a lógica do Fundeb: são 27 fundos, um por Unidade da Federação, que reúnem parte dos recursos já vinculados à Educação dos estados e municípios e os redistribuem com base no número de matrículas de cada rede de ensino. O Governo Federal complementa com um percentual (hoje,10%) sobre o valor arrecadado nacionalmente, também utilizando para parte dessa aplicação recursos já vinculados. Ou seja, o cerne do Fundeb está na redistribuição de recursos já destinados à Educação pela Constituição.
Sem esse mecanismo, as redes mais pobres ficariam apenas com recursos de receitas próprias. Mais de duas mil não chegariam a R$ 3.000 anuais por aluno e a desigualdade de financiamento chegaria perto de 13.800%. Com o Fundeb atual, o patamar mínimo é de R$ 3.700 por aluno/ano e as disparidades reduzidas a 570%.
A elevação do valor mínimo investido foi um dos fatores que possibilitou a diversos municípios fazer investimentos na melhoria da qualidade educacional. Entre 2007 e 2017, a parcela de alunos com aprendizagem adequada em Língua Portuguesa no Ensino Fundamental I, atribuição municipal, saltou de 28% para 60%.
Na iminência do fim da vigência do Fundeb, a Câmara foi muito além de sua prorrogação. Ampliou a complementação da União de 10% para 23% e mudou as regras de distribuição dos recursos, beneficiando ainda mais os municípios mais pobres. No novo modelo, o patamar mínimo saltará de R$3.700 para R$5.700 aluno/ano em 2026.
E por que isso é importante? Ao relacionarmos investimento per capita e resultados de aprendizagem encontramos um limite – por volta de R$ 5.500 por aluno/ano – abaixo do qual se torna muito difícil uma oferta educacional de qualidade minimamente aceitável. O drama é que 46% das redes brasileiras encontram-se abaixo desse patamar. Com o direcionamento de mais recursos para as localidades mais pobres, o novo Fundeb pode finalmente viabilizar melhorias de qualidade em escala nacional.
Ainda na linha da qualidade, o novo Fundeb introduz mecanismos de indução de melhorias na gestão. Primeiro, redefine as regras de distribuição do ICMS, incentivando a replicação do “ICMS-Educação”, modelo exitoso do Ceará. Segundo, as novas regras destinam parte do aporte da União às redes de ensino que mais melhorarem seus indicadores educacionais, com equidade.
Em relação aos gastos públicos, o aumento da participação da União será de R$ 3 bilhões no primeiro ano, estabilizando em R$ 20 bilhões a partir de 2026. A soma de todo o investimento adicional até 2026 (R$ 65 bi) é equivalente a 0,7% da arrecadação federal prevista para o período. Além disso, 1/3 da complementação da União pode ser suportado por recursos já vinculados à Educação pela Constituição. O novo Fundeb está longe de ser uma “bomba fiscal”.
Há também críticas ao estabelecimento de um piso de 70% do fundo para o gasto com pessoal. É preciso esclarecer que as novas regras se referem a profissionais da Educação, ampliando o número de categorias consideradas (atualmente, a regra é de 60% para profissionais do magistério) e que 98% das redes municipais já gastam mais de 80% do que recebem via Fundeb com salários. Se há uma preocupação, legítima, de que os orçamentos estão praticamente todos destinados à folha salarial, não é a regra existente no Fundeb que causa esse fenômeno.
Isso nos leva à relação do Fundeb com o Piso do Magistério. Atualmente, a Lei do Piso vincula o reajuste do piso salarial do magistério à elevação do menor valor por aluno observado no Fundeb. Assim, com crescimento de receitas e queda no número de alunos, nos últimos anos houve uma elevação do piso superior ao aumento do salário mínimo e da inflação, o que vem corrigindo a discrepância entre o valor social do professor e sua remuneração. No entanto, isso também gerou problemas fiscais, especialmente onde as carreiras não são bem desenhadas. Adicionalmente, os reajustes do piso também são aplicados aos inativos, como prevê a legislação.
Agora, como o patamar mínimo de investimento por aluno será elevado substancialmente com o novo Fundeb, se a regra de reajuste do Piso não for revista, ela aumentará os graves desequilíbrios existentes, como já alertado pelo Conselho de Secretários Estaduais de Educação (Consed), pela União dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM), pelo Todos Pela Educação e outros. O Governo Lula, inclusive, propôs que o reajuste do piso passasse a ser pela inflação (INPC), mas as discussões não prosperaram.
Notemos, portanto, que não são as normativas do Fundeb que causam distorções nas folhas salariais e no pagamento de inativos. As soluções para isso passam, entre outras, pela Lei do Piso, pelas reformas da previdência nos estados e municípios e pela Emenda Constitucional 41/2003.
Por fim, com a aprovação da PEC pelo Senado, o próximo passo é a lei que regulamentará o novo Fundeb. Um regulamentação importante é a do Custo Aluno Qualidade (CAQ), que deve resgatar seu sentido original como referência de oferta de qualidade. É preciso assegurar recursos para uma Educação digna, como já exposto, com especificação a partir de premissas e conceituação mais robustas do que as normalizadas no debate atual, que reduz a discussão à uma lista extensiva de insumos e a um valor monetário correspondente. Ignorar a diversidade de contextos no Brasil e o fato de que a relação gasto/qualidade depende de boa gestão, será um retrocesso. O mal encaminhamento dessa matéria poderá inibir a produção de soluções e causar uma explosão de judicializações, sem que isso resulte em melhor qualidade. Aprofundaremos esses pontos nas próximas semanas.
Como aqui exposto, o saldo do novo Fundeb é altíssimo. Não é a solução mágica para a Educação, mas eleva consideravelmente as chances de implementarmos uma agenda de melhoria da qualidade educacional em todo o País. Melhoria esta que terá nos resultados efetivamente conquistados a verdadeira expressão do direito à Educação.
Esse artigo foi originalmente publicado no Jornal Valor Econômico em 07/08/2020
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