Opinião: Sobre Educação Domiciliar
A recente decisão do STF
No último dia 12 de setembro deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou que a educação domiciliar, também conhecida como homeschooling, não é permitida no país. Entretanto, é preciso compreender a decisão do STF.
A maioria, sete dos onze ministros, entendeu que a educação domiciliar não é inconstitucional, mas não há lei que regulamente a prática de educar os filhos em casa, sem frequência à escola. (Um ministro chegou a propor prazo de um ano para o Congresso aprovar a lei de regulamentação, mas essa proposta não foi aceita pelos demais integrantes da suprema corte).
Apesar da posição majoritária pela constitucionalidade da matéria, dois ministros entendem que o “homeschooling” é inconstitucional: mesmo se o Congresso Nacional aprovasse lei para regulamentá-la, ainda assim essa prática seria ilegal. Um ministro, o relator, entende que o ensino domiciliar é legal, mas foi voto vencido.
Enfim, prevaleceu o entendimento de que é necessária regulamentação em lei para acompanhar o rendimento dos alunos educados em casa, por meio de avaliações pedagógicas, sob responsabilidade das secretarias de educação.
Em síntese, a posição majoritária do STF não encerra o debate sobre o tema, mas remete ao Congresso Nacional a possibilidade de regulamentar a matéria. Por esta razão, é fundamental aprofundar a análise da proposta de educação domiciliar para posicionamento junto à opinião pública e aos deputados federais e senadores na próxima legislatura.
+++LUGAR DE EDUCAÇÃO FORMAL É NA ESCOLA
Proposições em tramitação no Congresso Nacional
Pelo menos desde 2001, foram apresentadas na Câmara dos Deputados proposições para dispor sobre a educação domiciliar. Por exemplo, já foram arquivados os seguintes Projetos de Lei: o PL 6001/2001, do Deputado Ricardo Izar (PTB/SP), o PL 6484/2002, do Deputado Osório Adriano (PFL/DF), o PL 3518/2008, dos Deputados Henrique Afonso (PT/AC) e Miguel Martini (PHS/MG) e o PL 4122/2008, do Deputado Walter Brito Neto (PRB/PR).
Observe-se que os dois primeiros dispõem sobre o ensino em casa por meio de lei específica. Os outros dois, por alteração da Lei 9394/2006, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Observe-se também a variação de partidos e Unidades Federadas dos deputados autores dos referidos PLs.
Também já foi apresentada na Câmara dos Deputados Proposta de Emenda à Constituição para dispor sobre a regulamentação da educação domiciliar. Trata-se da PEC 444/2009, do Deputado Wilson Picler (PDT/PR), também arquivada.
Na atual legislatura, estão em apreciação na Câmara três proposições, que tramitam em conjunto. São eles: o PL 3179/2012, do Deputado Lincoln Portela (PR/MG), o PL 3261/2015, do Deputado Eduardo Bolsonaro (PSC/SP) e o PL 10185/2018, do Deputado Alan Rick (DEM/AC). Essas proposições propõem alterações na LDB e, as duas últimas, também na Lei 8069/1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Distribuída às Comissões de Educação e de Constituição e Justiça e de Cidadania, a proposição tramita sujeita à apreciação conclusiva das comissões permanentes da Câmara dos Deputados. No presente momento, a matéria aguarda apresentação de novo parecer da relatora, Deputada Professora Dorinha Seabra Rezende (DEM/TO), devido à apensação do PL 10185/2018. O parecer já apresentado anteriormente pela relatora foi pela aprovação dos PL 3179/2012 e PL 3261/2015, com Substitutivo.
A recente decisão do STF poderá contribuir para intensificar, até mesmo para acelerar, a tramitação dessas proposições no Congresso Nacional.
Argumentos em defesa a educação domiciliar
Vários argumentos são utilizados em defesa da educação domiciliar. Em primeiro lugar, os defensores da homeschooling afirmam o direito dos pais de escolherem a educação para seus filhos. Segundo o relator do processo no STF, o ensino domiciliar é um direito dos pais, “especialmente diante de indícios de que a qualidade da educação ofertada nas escolas é deficiente”.
O caso julgado pelo STF foi originário de recurso ajuizado por uma família do Município de Canela/RS, no qual três motivos foram apresentados em defesa do ensino em casa. Em primeiro lugar, sua filha de 11 anos frequentava uma escola municipal com classe multisseriada, na qual conviviam alunos de diferentes faixas etárias, situação considerada inapropriada pela família, pois os alunos mais velhos tinham “sexualidade bem mais avançada”.
Em segundo lugar, a família argumentou que tinha discordâncias religiosas em relação ao conteúdo lecionado. “Por princípio religioso, a impetrante discorda de algumas imposições pedagógicas do ensino regular, como, por exemplo, a questão atinente ao evolucionismo e à Teoria de Charles Darwin. Com efeito a impetrante é cristã (criacionista) e não aceita viável ou crível que os homens tenham evoluído de um macaco, como insiste a Teoria Evolucionista”, argumentam os pais.
Uma segunda linha de argumentação em defesa da educação domiciliar consiste na apresentação das experiências internacionais. Especialmente em países desenvolvidos, como o Reino Unido e os Estados Unidos, é crescente o número de crianças e adolescentes atendidos por meio da homeschooling.
Argumentos em defesa da educação escolar, portanto, contrários à educação domiciliar
Em 2000, a Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação aprovou o Parecer CEB/CNE 34/2000, sobre a validação do ensino ministro no lar, em resposta a pedido de manifestação sobre a matéria do Conselho Estadual de Educação de Goiás.
Ao analisar aspectos de natureza legal, o Parecer CEB/CNE 34/2000 enumera dispositivos da Constituição Federal de 1988 com referências claras à educação escolar: por exemplo, o princípio com base no qual o ensino deve ser ministrado relativo à “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola” (art. 208, I). Ao mesmo tempo, “a Constituição Federal aponta nitidamente para a obrigatoriedade da presença do aluno na escola, em especial na faixa de escolarização obrigatória (…), instituindo para o Poder Público a obrigação de recensear, fazer a chamada escolar e zelar para que os pais se responsabilizem pela frequência à escola” (CF, art. 208, § 3º).
Na sequência, o Parecer CEB/CNE 34/2000 analisa dispositivos da LDB. De acordo com o art. 1º da Lei, a educação é um processo mais amplo do que a educação escolar, que se desenvolve predominantemente, por meio do ensino. Observe-se que são três conceitos de diferentes graus de abrangência: educação, educação escolar, ensino.
Ao abordar a finalidade da educação de promover “o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (LDB, art. 2º), o Parecer da CEB/CNE conclui que a educação é dever do Estado e da família, “porque a família, só ela, jamais reunirá as condições mínimas necessárias para alcançar objetivos tão amplos e complexos”. Afirma também que a solidariedade humana e a tolerância recíproca, que fundamentam a vida em sociedade, “não deverão ser cultivados no estreito (no sentido de limitado) espaço familiar. A experiência do coexistir no meio de outras pessoas, a oportunidade do convívio com os demais semelhantes, tudo são situações educativas que só a família não proporciona e que, portanto, não garante o que a lei chama de preparo para a cidadania plena”.
Ao comentar a exigência do mínimo de 75% de frequência para aprovação no ensino fundamental e médio, o Parecer da CEB/CNE afirma que “a lei enfatizou a importância da troca de experiências, do exercício da tolerância recíproca, não sob o controle dos pais, mas no convívio das salas de aula, dos corredores escolares, dos espaços de recreio, nas excursões em grupo fora da escola, na organização de atividades esportivas, literárias ou de sociabilidade, que demandam mais que os irmãos apenas, para que reproduzam a sociedade, onde a cidadania será exercida. Porque o preparo para esse exercício é uma das três finalidades fundamentais da educação”.
Lembre-se, ainda, que a LDB (art. 6º) dispõe sobre o dever dos pais ou responsáveis de efetuar a matrícula das crianças na educação obrigatória. No texto original da Constituição de 1988, o ensino fundamental era obrigatório. A partir de 2016, a obrigatoriedade foi ampliada para a educação básica dos 4 aos 17 anos. O Parecer em análise conclui que “matricular em escola, pública ou privada, para o exclusivo fim de ‘avaliação do aprendizado’ não tem amparo legal”. Portanto, quando a matrícula é obrigatória, “o ensino presencial e o convívio com outros alunos de idade semelhante é considerado componente indispensável a todo o processo educacional”.
Ao comentar a recente decisão do STF, o Ministério da Educação (MEC) condenou a prática do ensino domiciliar e recomendou “que as famílias sigam o parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE), segundo o qual ‘a Constituição Federal aponta nitidamente para a obrigatoriedade da presença do aluno na escola’. Ainda segundo o MEC, cabe ao “Poder Público a obrigação de recensear, fazer a chamada escolar e zelar para que os pais se responsabilizem pela frequência à escola”.
No STF, ministros argumentaram contrariamente à educação domiciliar afirmando que, “sem uma legislação específica”, essa prática poderia implicar “grandes problemas de evasão escolar (…) – evasão escolar travestida de ensino domiciliar”. Também argumentaram que o ensino em casa “em certas circunstâncias é, na verdade, uma superproteção nociva à criança”, ou, ao contrário, que “legitimar essa prática poderia estimular o trabalho infantil e escamotear outras graves mazelas que acometem menores”.
Considerações
Em primeiro lugar, o posicionamento em relação a homeschooling deve abordar aspectos legais e aspectos de mérito, pedagógicos e sociais.
Quanto à questão legal, o STF não tem posição unificada sobre a constitucionalidade da matéria. Se constitucional, o Supremo entende que é necessária regulamentação por lei específica. Já a CEB/CNE defende que a educação domiciliar não é compatível com a Constituição Federal de 1988 e com a LDB de 1996.
Mais importante é analisar os aspectos de mérito, pois as alterações legais, ou até constitucionais, poderiam ser encaminhadas se a educação domiciliar fosse considerada solução positiva.
Quanto ao mérito, importante destacar que, em relação ao direito e ao dever em relação à educação, o conceito de obrigatoriedade do ensino implica dois deveres e dois direitos: o dever do poder público – de assegurar matrícula a todos – e o dever dos pais ou responsáveis – de matricularem e assegurarem a frequência de crianças e jovens à escola –, em contrapartida do direito do indivíduo – entendida a escolarização como condição necessária à sua socialização – e da sociedade – pela mesma razão, ou seja, devido à necessidade de escolarização para formação de indivíduos aptos à convivência social.
Os argumentos em defesa do direito das famílias de escolherem educar seus filhos em casa devem ser adequadamente contrapostos. Em primeiro lugar, o direito da família não pode ser o de segregar seus filhos da convivência com a diversidade existente na sociedade. A educação começa na família, mas necessariamente deve ter continuidade no espaço escolar, tal como argumenta a CEB/CNE no Parecer 34/2000. Se a educação escolar tem deficiências, evidente que sim, a solução não é proteger os seus filhos dessa escola, e sim reivindicar a melhoria da qualidade da educação para todas as crianças e jovens brasileiros. Com franqueza, a educação domiciliar tem uma dimensão de individualismo, para não dizer egoísmo.
Com certeza a convivência de alunos de diferentes idades na mesma turma, ou mesmo utilizando a mesma sala de aula em turnos escolares diversos, não é adequada à formação integral do educando. São situações que precisam ser corrigidas no ambiente escolar.
Ao mesmo tempo, as famílias não têm o direito de educar seus filhos no desconhecimento das diferentes concepções e teorias científicas hoje presentes no mundo. Por exemplo, se é pleno direito de uma família educar seus filhos de acordo com a concepção criacionista, ela não tem o direito de impedir que eles conheçam outras visões do surgimento da humanidade, como o evolucionismo de Charles Darwin.
É necessário identificar quem são os setores da sociedade brasileira que defendem a educação domiciliar. Por um lado, aqueles que afirmam ter condições financeiras de educar seus filhos em casa. Com certeza, a ampla maioria da população brasileira reivindica acesso à educação escolar, principalmente em instituições públicas. Por outro lado, o homeschooling é defendido pelos evangélicos, pelos argumentos já apresentados referentes a crenças religiosas.
Em uma sociedade desigual como a brasileira, a permissão do ensino domiciliar implicaria aumento das desigualdades sociais. Hoje, já existe uma diferenciação entre os setores sociais de renda média alta e alta e os demais setores sociais de menor poder aquisitivo. Os filhos dos primeiros grupos frequentam escolas privadas de elite e, em geral, ingressam em instituições públicas de educação superior. Os filhos dos demais setores da sociedade brasileira cursam a educação básica na escola pública e, quando concluem o ensino médio e ingressam na educação superior, vão para instituições privadas. É bem provável que a permissão do homeschooling venha a agravar essa segregação social existem no Brasil.
Conforme consta, por exemplo, no Substitutivo aos PLs hoje em apreciação na Câmara dos Deputados, a proposta de que crianças e adolescentes atendidos em educação domiciliar devam estar matriculados em uma escola, pública ou privada, e que sua aprendizagem seja avaliada pelo respectivo sistema de ensino, reduz a educação escolar estritamente ao aprendizado dos conteúdos escolares. Educação escolar é mais do que isso. A aprendizagem dos princípios de liberdade e dos ideais de solidariedade humana, da convivência com as diferenças e da tolerância, faz parte integrante da educação escolar. Hoje, cada vez mais se debate a importância das competências socioemocionais, necessárias para enfrentar os desafios do século XXI.
Por fim, quanto ao argumento de que outros países admitem o homescholling, é necessário que as condições sociais das diferentes nações sejam consideradas ao tratar desse tema. Da mesma forma, nos países desenvolvidos não há vinculação constitucional de recursos para aplicação em educação, pois a organização da sociedade, em regra geral, é suficiente para assegurar recursos em quantidade adequada quando da aprovação dos orçamentos públicos. No Brasil, ao contrário, sempre que a vinculação de recursos para a educação foi subtraída do texto constitucional, houve redução das aplicações financeiras na educação no país. Portanto, somente quando o Brasil superar as extremas desigualdades e injustiças sociais que hoje caracterizam a sociedade brasileira, temas como esses poderão ser colocados na pauta do debate público.
Em síntese, no atual momento da sociedade brasileira o posicionamento correto é contrário à educação domiciliar e, portanto, contrário à aprovação dos projetos de lei em apreciação na Câmara dos Deputados.
*Mariza Abreu é formada em História e Direito. Professora da Educação Básica. Diretora do CPERS e CNTE. Secretária de Educação de Caxias do Sul. Presidente da Undime/RS. Secretária de Educação do RS. Vice-presidente do Consed. Co-autora e autora de artigos e livros. Consultora da CNM.