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Entenda os mitos que afastam o Brasil de ter uma escola inclusiva e melhor para todos

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Um ambiente escolar cheio de diferenças é a força da escola, não apenas para pessoas com deficiência, mas para todos os estudantes, é o que defende Liliane Garcez, gerente de projetos do Instituto Rodrigo Mendes, organização que reúne evidências e desenvolve ações voltadas à escola inclusiva há 25 anos. Fazer da presença da pessoa com deficiência um problema é o primeiro de uma série de mitos que impedem o Brasil de ter uma EducaçãoJá! para todos. Conheça alguns deles e entenda como ao desfazê-los e apostarmos na diversidade podemos garantir escolas capazes de gerar soluções criativas para o desenvolvimento individual e do País a partir da diversidade. Afinal, Educação é de qualidade só quando é para todos.

 

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Deficiência é assunto para especialista. Um dos muitos mitos que impedem a inclusão (não apenas de pessoas com deficiência, mas a diversidade no geral) é a ideia de que a escola comum suporta só até um certo grau de diferenças, pois crianças com deficiências podem ser um desafio grande demais para a escola. “Sempre que fazemos formação no IRM misturamos professores da sala de aula comum, coordenador, diretor e professor especializado. Por que misturar essas pessoas? Porque  a inclusão não acontece na sala da AEE (Atendimento Educacional Especializado), não acontece em ambientes segregados. Ela acontece na escola, e na sala de aula com todo mundo (e suas diferenças). A gente investe em diálogo para romper essas percepções que é a de que apenas especialistas podem ensinar a pessoa com deficiência”, afirma Liliane.

 

Ele (a) é deficiente. O predicativo deficiente está aposentado e o termo pessoa COM deficiência, usado atualmente, não é apenas um detalhe. Ele expressa alguns conceitos importantes:  existe um leque de nuances em quadros de deficiência (nem todas as pessoas com surdez são iguais) e a deficiência não está na pessoa (por isso ela não “é” deficiente) e sim nas barreiras construídas nas relações interpessoais e na infraestrutura. Parece sútil? Mas é uma mudança e tanto. “Uma pessoa com cegueira pode precisar de Braille e outra não por ter ficado cega tardiamente e já ter usado computador. Ou seja, o apoio da escola vai variar, porque uma determinada deficiência não é homogênea – eu passo a pessoa na frente e não a cegueira, neste exemplo. Por isso, é preciso dinamizar o ambiente da sala de aula. O professor deve gastar suas energias pensando em estratégias para romper as barreiras a partir de relações estabelecidas concretamente com os alunos que compõe a turma e não a partir das deficiências apresentadas sob a forma exclusivamente do diagnóstico”, explica Liliane. 

 

Primeiro adaptação, depois inclusão. Um modelo que prevaleceu por muitos anos no Brasil foi a ideia de só incluir crianças com deficiência depois de haver a adaptação completa do ambiente para escola inclusiva. Liliane esclarece que dar o acesso a essas crianças, ainda que a escola não esteja perfeita, é importante pois a presença dela encaminha transformações no espaço e nas relações, uma vez que passa a se enxergar melhor do que elas necessitam em suas especificidades. “Não podemos cair nessa de primeiro eu preparo a escola para depois integrar. Dar acesso à escola comum para as crianças com deficiência é o próprio gerador de mudanças, e não o contrário. As escolas, redes de ensino e educadores não saberiam o que fazer se essas crianças com especificidades não estivessem lá na escola, porque a deficiência e a acessibilidades são questões relacionais. Isto é, só se enxerga qual apoio dar às pessoas com deficiência a partir da identificação das barreiras presentes.”

 

Apenas as escolas especiais são capazes de dar à criança e ao jovem com deficiência o que eles precisam. Esse é um mito persistente, especialmente pela falta de conhecimento a respeito do leque e nuances que compõem as deficiências. Liliane conta qual o papel das escolas especiais no contexto atual. “A Educação Especial é uma modalidade de ensino sempre complementar (no caso das pessoas com deficiência) ou suplementar (no caso das pessoas com altas habilidades e superdotação). Isto é, ela deve estar junto com a Educação comum, não substituí-la. Ao olharmos essa modalidade na perspectiva complementar, nós dizemos às famílias que não têm mais que escolher entre ensino especial e regular, pois se a criança precisa de ambos, ela deve tê-los: é direito dela ter acesso ao currículo comum, mas também ter suas necessidades específicas atendidas de maneira complementar para que a aprendizagem e o desenvolvimento de talentos aconteça. Nessa perspectiva articulada, houve nos últimos anos, investimento em infraestrutura especial dentro das escolas regulares, na organização da sala de recursos multifuncionais, por exemplo. Todos os municípios têm pelo menos uma”, conta.

Ele (a) precisa de médico e não professor. Ao lado da impressão que as crianças e jovens com deficiência precisam de atendimento especializado o tempo todo, está a ideia de que, na verdade, eles são caso de saúde. Como todas as pessoas, quem tem deficiência pode ter uma necessidade específica que exija atendimento médico complementar, mas é mito que isso ocorra em 100% dos casos. “Pode ser que uma criança com deficiência intelectual precise de um fonoaudiólogo, por exemplo. Mas pedagogicamente ele pode precisar resolver outras questões que nada têm a ver com médicos e sim com metodologias de ensino, algo próprio de qualquer escola inclusiva”, diz Liliane.

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Não preciso pensar em escola inclusiva, já que não convivo com pessoas com deficiência. Outra falsa impressão é que o debate da inclusão só diz respeito às pessoas com deficiência e quem lida com elas, quando, na verdade, a diversidade é da natureza humana e está presente entre as pessoas sem deficiência também. Em uma sala de aula, há diversidades de necessidades específicas, ao incluir um estudante com deficiência haverá mais uma dessas particularidades entre tantas, o que aliás, fortalece a aprendizagem, como explica Liliane. “Em ambientes homogêneos você não é cutucado para sair do lugar que estava e ir para outro, que é essencialmente a matéria-prima do aprender, o que vale para as pessoas com e sem deficiência. As barreiras que aparecem na escola, portanto, são questões próprias da comunidade escolar, temos que lutar para diminuí-las para pessoas com e sem deficiência. Investir em uma ambiente comum de aprendizagem é investir em professores melhores, que estejam instigados em mudar suas estratégias pedagógicas e se tornem professores melhores para todo mundo. Quando se usa um material pedagógico acessível multissensorial, por exemplo, fazemos com que  aquele meu aluno sem deficiência consiga também ser desafiado por outras vias que não só lápis e papel – traz benefícios não para as pessoas com deficiência, mas para todos.”

 

Gostou de desfazer essa série de mitos que impedem que a Educação avance para todos? Então leia sobre mais alguns deles no próximo texto a respeito do assunto “escola inclusiva”