Números que contam histórias: cultura afro-brasileira na matemática
A diversidade cultural é uma das maiores riquezas do Brasil. A convivência de diferentes matrizes culturais é tamanha que, em alguns lugares, como na cidade de São Paulo, basta circular entre bairros vizinhos para experimentar sabores gastronômicos e ritmos musicais de ascendências diferentes. Apesar disso, a intolerância e o racismo persistem e é justamente nesse sentido que as escolas – e a Educação como um todo – têm um grande dever a cumprir, principalmente quando falamos sobre a cultura afro-brasileira.
Temas relacionados à história e à cultura afro-brasileira já fazem parte do currículo escolar desde 2003 e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) da Educação Infantil e do Ensino Fundamental, aprovada ano passado, reforça a importância de se abordar diversidade nas escolas. Com o prazo de três anos para ser implementado, o documento lista 16 habilidades e 11 objetos de conhecimento gerais que abordam diversidade étnica, história e cultura afro-brasileira, todas relacionadas à área de humanas.
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Mas se engana quem acha que o assunto diz respeito apenas às aulas de história e geografia. Para a doutoranda em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) Andréia Lunkes, a diversidade também é tema das exatas. “A matemática se desenvolve por relações humanas em diversos contextos. Perceber isso requer ampliar a visão e compreender que o conhecimento não é separado em caixinhas”, explica.
Essa mesma perspectiva mobilizou outra Andreia, lá na região sul do País. A partir de elementos da cultura e da história afro-brasileira, a professora Andreia Cristina Maia desenvolveu o projeto “África – Berço da Matemática” na Escola de Ensino Médio Governador Celso Ramos, em Joinville (SC).
A base teórica do projeto foi a chamada etnomatemática, ramo de estudo que reconhece como cada povo desenvolve sua técnica matemática, levando em conta o contexto sociocultural. Um exemplo clássico é o sistema de numeração. Aprendemos sobre os algarismos romanos, mas usamos no cotidiano o sistema indo-arábico (isto é, os dígitos de 0 a 9), que surgiu no Oriente.
Com isso em mente, Andreia utilizou búzios (pequenas conchas) para ensinar probabilidade e um osso de Ishango (osso do macaco babuíno com marcações matemáticas, encontrado pela primeira vez no continente africano) para abordar o conteúdo de números primos, por exemplo. “Foi um desafio porque o assunto era completamente desconhecido pelos alunos. Para incentivá-los, fiz uma apresentação da proposta, explicando o que é etnomatemática e como trabalharíamos o tema do respeito ao próximo por meio dos conteúdos”, conta.
Apesar do estranhamento inicial, o projeto fez sucesso com os estudantes. “Nós quebramos paradigmas, porque eles passaram a conhecer e também a respeitar a cultura africana”, afirma. A qualidade da iniciativa também foi reconhecida fora da escola, sendo considerada uma das 50 melhores experiências pelo Prêmio Educador Nota 10 – 2017, da Fundação Victor Civita.
Nova perspectiva contra um antigo preconceito
A iniciativa da professora Andreia vai ao encontro da lei (Lei 10.639/03) de inclusão de história e cultura afro-brasileira nos currículos da Educação Básica, cujo objetivo é reconhecer a cultura negra e a contribuição dos povos africanos para a construção do Brasil, além de combater o preconceito racial. No entanto, a experiência da catarinense destoa da situação no restante do País. De acordo com levantamento do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT) a partir do Censo Escolar de 2015, uma em cada quatro escolas públicas não aborda o racismo em seu currículo e mais da metade não trabalha o conteúdo da diversidade religiosa.
Para Rodrigo Abreu, licenciado em matemática e integrante do Grupo de Estudos e Pesquisa em Etnomatemática (GEPEm) da Faculdade de Educação da USP, os professores de matemática tendem a negligenciar a história e a cultura afro-brasileira. “Se não provocarmos essa reflexão, o docente de matemática pode pensar que quem deve dar conta disso é apenas o professor de história”, afirma.
Obstáculos na formação
Aliás, quando o assunto é formação de professores de matemática para o trabalho com a diversidade étnica, pesquisadores e professores fazem coro: falta muito. Andreia, a professora de Joinville, ouviu de passagem sobre a etnomatemática durante a graduação e só descobriu como utilizá-la anos mais tarde, quando já estava lecionando. Rodrigo, por sua vez, nunca havia trabalhado o tema até que um amigo o convidou para visitar um grupo de estudos que trata do assunto. Já a pesquisadora Andréia Lukens conheceu o assunto no 1º Congresso Brasileiro de Etnomatemática, realizado em 2000. “Há iniciativas para a pesquisa, mas poucas para disciplinas de graduação. O tema ainda é um território em disputa, porque essa área entra em choque com a formação tradicional em matemática”, explica.
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Essa resistência gera uma perda enorme, alegam os especialistas. “O objetivo não é transformar as atividade escolares da disciplina em algo lúdico. É mais do que isso: trata-se de praticar respeito e escuta”, argumenta Rodrigo. Andreia Lukens concorda. “Só se respeita o que é conhecido e reconhecido como um saber. No caso da cultura africana, há um enorme desconhecimento. Ou mudamos nossa maneira de perceber o conhecimento ou nos restringimos às experiências do dia 20 de novembro. Mas falar de relações étnicos-raciais é algo maior do que colocar um dia no calendário”, critica.
Como colocar a Etnomatemática na sala de aula?
Curtiu essa história de misturar matemática e diversidade? Então confira alguns materiais, indicados pelos especialistas Rodrigo e Andreia, que podem ajudar os educadores a se aprofundarem no tema. E fica a dica: realizou alguma atividade e ficou feliz com os resultados? Compartilhe a experiência com outros docentes para que os desafios de implementação da etnomatemática sejam superados! Inspire seus colegas.
Edição Especial da Scentific American Brasil sobre Etnomatemática
Conversa de Ubiratan D’Ambrósio, pioneiro da Etnomatemática no Brasil com Paulo Freire