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Análise: Mudanças na Formação Inicial de professores aprovadas pelo CNE podem ser início de grande transformação

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O Conselho Nacional de Educação (CNE) aprovou no início deste mês (novembro) uma resolução em que define as novas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica. Este documento traz um conjunto de normas obrigatórias que orientam a criação e a organização dos cursos de Pedagogia e Licenciaturas nas Instituições de Ensino Superior (IES) públicas e privadas.

O Todos Pela Educação, que já havia elencado, no Educação Já! (2018), a necessidade de mudanças nas DCN participou ativamente das discussões ao longo de 2019 e avalia que as novas diretrizes aprovadas pelo CNE podem representar o início de uma transformação profunda na formação inicial de professores no Brasil.

“Melhorar radicalmente a formação de professores requer uma série de políticas articuladas, pois o desafio não é simples: apesar de termos boas experiências no Brasil, a maioria dos cursos negligenciam a articulação da teoria com a prática, pouco tratam dos conteúdos que os futuros docentes deverão ensinar e estão descolados da realidade das escolas. Com as novas DCN, há uma clara indução para que esses desafios sejam enfrentados”, diz Priscila Cruz, presidente-executiva do Todos Pela Educação.

Aprovadas por unanimidade no CNE

A discussão da matéria no CNE foi objeto de uma Comissão Bicameral (Educação Básica e Ensino Superior), presidida pela conselheira Maria Helena Guimarães de Castro e relatada pelo conselheiro Mozart Neves Ramos. A aprovação da nova Resolução se deu por unanimidade, após período de consulta pública e realização de audiência pública para debater a questão.

 

O Todos Pela Educação participou da audiência pública realizada pelo CNE no dia 08 de outubro de 2019. Clique na imagem para ver em tamanho maior. 

 

A nova Resolução substitui a anterior (Resolução nº 02/2015), que apontava em sentido desejável mas trazia pouca clareza sobre como os cursos deveriam efetivamente ser estruturados e não induzia a mudança de importantes instrumentos de regulação. Além disso, o último documento havia sido produzido antes da homologação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), exigindo, portanto, revisão e atualização para que a formação inicial dos professores passasse a contemplar a BNCC de maneira explícita e intencional.

Abaixo são destacados os principais pontos positivos das novas DCN que podem melhorar a formação docente. Na sequência, ressalta-se também um importante ponto de atenção que precisará ser acompanhado ao longo dos próximos anos para que os avanços das novas DNC não sejam fragilizados. Além disso, uma série de políticas públicas devem ser reformuladas para que as novas DCN promovam a melhoria da qualidade dos cursos voltados à docência – por isso também apontaremos os principais aspectos que deverão ser priorizados em nível nacional daqui em diante.

Pontos positivos

  1. Manutenção da carga horária em 3.200 horas

    O CNE decidiu manter a carga horária mínima de 3.200 horas dos cursos de formação inicial de professores, a ser cumprida em no mínimo 8 semestres – o que é compatível com a de outros países e também com outros cursos de Ensino Superior no Brasil, especialmente aqueles com ênfase em competências práticas.

  2. Definição de competências no perfil de quem concluiu o curso

    O perfil esperado de um egresso dos cursos de formação de professores não era claro nas diretrizes anteriores (Resolução nº 02/2015) e avançou muito no novo documento, com a especificação dos conhecimentos e competências que os alunos devem dominar ao se formar. Adotada em muitos países com bons sistemas de formação inicial, essa medida é essencial para nortear os currículos das faculdades e induzir mudanças em outras políticas públicas, como o Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade), que avalia a qualidade dos cursos oferecidos pelas universidades.

  3. Cursos mais voltados para a prática e com ênfase no conhecimento pedagógico do conteúdo

    A Resolução aprovada traz diretrizes para que os cursos sejam mais voltados para a prática de ensino, com a exigência de vivências em escolas de Educação Básica desde o início da graduação. Além disso, metade da carga horária passa a ser destinada à aprendizagem dos conteúdos específicos que os futuros professores irão ensinar, assim como ao domínio pedagógico desses saberes (ou seja, como eles devem ser ensinados). Esse é o cerne da formação docente em países que efetivamente preparam seus professores para o início do exercício da profissão.

  4. Restrição ao uso da modalidade de Ensino a Distância (EAD) na parte prática da formação

    Das 3.200 horas de carga horária total dos cursos de formação de professores, as novas diretrizes dizem que 800 horas são dedicadas à prática pedagógica, que devem ser trabalhadas de forma presencial. Assim, mesmo cursos em EAD terão, pelo menos, 25% da carga horária presencial. Essa medida vai na direção correta, dado que é inviável se desenvolver a distância, e com qualidade, as competências da formação mais ligadas à prática. Como 64% dos alunos que ingressam em cursos voltados à docência já estão no EAD, é fundamental delimitar seu uso para garantir que esses futuros professores tenham uma formação com mais qualidade.

  5. Flexibilização da carga horária da Segunda Licenciatura

    As DCN recém aprovadas reduziram a carga horária necessária para alunos já licenciados cursarem uma Segunda Licenciatura: passou a ser de 760 horas, com possibilidade de aproveitamento de 200 horas (antes era de 1.200 horas, com possibilidade de aproveitamento de 400 horas). Atualmente, cerca de 25% dos professores brasileiros dos Anos Finais do Ensino Fundamental e do Ensino Médio dão aula em disciplinas diferentes daquelas para as quais são licenciados (ver tabela abaixo). Ou seja, precisariam de uma Segunda Licenciatura para terem a formação adequada para a disciplina que lecionam. Como já passaram pela formação em licenciatura, têm experiência de sala de aula e também com o conteúdo curricular, por isso, uma formação mais rápida pode ser mais interessante.


Fonte: Censo da Educação Superior, MEC/Inep. Elaboração: Todos Pela Educação. Clique na imagem para ver em tamanho maior. 

Ponto de atenção

Flexibilização da carga horária da Formação Pedagógica para Graduados

A Formação Pedagógica para Graduados não licenciados – também conhecida como “complementação pedagógica” – é um curso oferecido para bacharéis que buscam obter habilitação para atuar como professor da Educação Básica. As DCN aprovadas reduziram drasticamente a carga horária total destes cursos, que passou de 1.400 horas (com possibilidade de aproveitamento de 400 horas) para 760 horas (sem possibilidade de aproveitamento). Conforme apontado pelo Todos Pela Educação durante a etapa de consulta pública, essa redução de quase 50% do tempo gera grande preocupação, por cinco principais razões:

  1. A redução da carga horária para esse tipo de formação não encontra respaldo em outras experiências internacionais. Em outros países, a carga horária para a complementação pedagógica é semelhante a um mestrado profissional – por exemplo, no Chile é de 1.080 horas, na Finlândia, 1.560 horas e em Portugal, 3.120 horas.
  2. Não existe um sistema de regulação que garanta um patamar mínimo de qualidade para esses cursos. Eles não são avaliados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e os concluintes não fazem o Enade. Além disso, os cursos podem ser oferecidos por qualquer IES, mesmo que esta não tenha o curso de graduação correspondente.
  3. Essa medida vai na contramão do objetivo da Resolução aprovada, que propõe a valorização e profissionalização da docência. Com essa nova carga horária, em menos de 1 ano um graduado em qualquer área se habilita para se tornar docente. Assim, reforça-se a visão de que qualquer profissional possa ser professor e que a docência não requer um conjunto de conhecimentos específicos que são complexos e necessitam de um relevante período de tempo e prática para serem adquiridos.
  4. Independentemente da primeira graduação do indivíduo e de experiências prévias, a carga horária exigida é a mesma. Por exemplo: um bacharel em matemática que já é professor há anos e um bacharel em administração que nunca deu aula cursam as mesmas 760 horas para obter a Formação Pedagógica em matemática.
  5. Diferente do que se imagina, são poucos os atuais professores que precisariam de formação pedagógica para passar a ter formação adequada para a docência. Nos Anos Finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio, por exemplo, aproximadamente 6% dos atuais docentes são bacharéis que não possuem formação pedagógica (ver tabela abaixo).  A medida, logo, não se justifica.


Fonte: Censo da Educação Superior, MEC/ Inep. Elaboração: Todos Pela Educação. Clique na imagem para ver em tamanho maior.

Por esses motivos, preocupa a diretriz aprovada de redução da carga horária da Formação Pedagógica para Graduados. Será preciso acompanhar o que ocorrerá com estes cursos nos próximos anos e criar políticas que assegurem a qualidade dessa formação.

E agora?

O que deve ser feito a partir das novas DCN para garantir as melhorias na formação inicial de professores?

Para que as mudanças trazidas pelas novas DCN se efetivem e promovam impactos concretos na formação inicial de professores, será fundamental que o tema seja priorizado pelo Ministério da Educação (MEC). De mais importante, o MEC precisará promover melhorias no Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES), refletindo as normativas aprovadas nas DCN nos mecanismos de regulação dos cursos de Pedagogia e Licenciaturas. Isso significa mudar os critérios e indicadores de qualidade e os instrumentos de avaliação desses cursos. Nesse sentido, se destacam:

  1. Mudanças no Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade)– A matriz de competências que direciona a prova do Enade para Pedagogia e Licenciaturas deve ser reestruturada à luz das competências trazidas no perfil do egresso indicado nas DCN. A própria Resolução aprovada pelo CNE já prevê a reelaboração do Enade em consonância com as novas diretrizes.- O desempenho dos estudantes de cursos de formação de professores deveria passar a ser avaliado anualmente. Além disso, as notas do Enade necessitam permitir comparações ao longo do tempo, adotando metodologias próprias para isso (como, por exemplo, a que utiliza o conceito de Teoria de Resposta ao Item).- Os concluintes dos cursos de Formação Pedagógica para Graduados devem passar a ser considerados no Enade (atualmente, não realizam o exame). Como esses cursos habilitam profissionais para a docência, é importante que exista um acompanhamento do desempenho dos alunos concluintes desses cursos.
  2. Mudanças nos instrumentos e indicadores que avaliam os cursos e são utilizados nos processos de autorização, reconhecimento e renovação para funcionamento– É preciso que se criem instrumentos e indicadores específicos para os cursos de Pedagogias e demais Licenciaturas, dando mais peso e relevância na avaliação final dos cursos para os fatores apontados pelas DCN como essenciais para formar bons professores, tais como a ênfase na prática de ensino e a estruturação dos estágios supervisionados. Esse não é o caso dos atuais instrumentos e indicadores utilizados pelo Inep/MEC.- A nova Resolução dispõe que os cursos EAD deverão apresentar fundamentação teórica para embasar o uso do EAD em cada componente curricular. É central que a avaliação dos cursos EAD incorpore essa dimensão.- Os cursos de Formação Pedagógica para Graduados devem passar por processos de autorização, reconhecimento e renovação semelhantes aos quais os outros cursos voltados à docência de 3.200 horas são submetidos, buscando dar transparência sobre sua qualidade.

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Atuação do Todos

Saiba quais foram as contribuições do Todos para o avanço dessa agenda

Os avanços que as novas DCN trarão para o País será fruto do esforço de diversos atores ao longo dos últimos anos, incluindo o Todos Pela Educação, que desde sua criação advoga por mudanças na formação e carreira docente. Mais recentemente, o Todos intensificou sua atuação no tema, com iniciativas que objetivaram, prioritariamente, gerar senso de urgência sobre o assunto, produzir conhecimentos para apoio à construção de propostas e qualificar o debate público. Veja abaixo um resumo das principais ações:

2016

– Publicação do livro “Formação de Professores no Brasil – Diagnóstico, agenda de políticas e estratégias para a mudança”, coordenado pelo Professor Fernando Abrucio, da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP). O estudo traz um panorama geral sobre o tema e elenca alguns caminhos a serem seguidos, dentre eles a necessidade de mudanças na regulação da formação inicial.

2017

– Coordenação de um grupo de especialistas em formação de professores, para estruturar um diagnóstico claro dos principais entraves e propor soluções concretas de políticas públicas. Foi o início da iniciativa “Profissão Professor”, que posteriormente virou um esforço independente e que hoje se chama “Movimento Profissão Docente”.

– Em parceria com o Cenpec, produção e disseminação da pesquisa “Consensos e dissensos em torno da definição de Referenciais de Atuação Docente”, para melhor qualificar o debate sobre os principais argumentos a favor e contra a definição de um marco referencial docente que estabeleça os conhecimentos e competências profissionais dos professores.

– Em parceria com a FGV-SP, produção e disseminação de outras duas pesquisas que também se aprofundaram em experiências nacionais e internacionais de marcos referenciais: “Métodos Inovadores de Ensino: As Experiências Nacionais de Referenciais de Atuação Docente” e “Métodos Inovadores de Ensino: As Experiências Internacionais de Referenciais de Atuação Docente”.

– Organização do evento “Seminário Técnico – Referenciais da Atuação Docente”, com a presença de duas das principais referências internacionais sobre o tema: Cristián Cox, do Chile e Margery Evans, da Austrália. Foram mais de 80 especialistas brasileiros participando e debatendo sobre a importância dessa agenda para uma transformação sistêmica da formação e carreira de professores.

2018

– No âmbito da iniciativa Educação Já!, coordenação de um grupo de trabalho para construir propostas de políticas públicas nacionais para a valorização e profissionalização docente, que incluiu recomendações para a melhoria da formação inicial de professores (acesse aqui o material completo). Dentre as propostas, estavam a definição de um Marco Referencial Docente nacional, para nortear as políticas docentes, e a revisão das DCN para os cursos de Pedagogia e demais Licenciaturas. Essas propostas foram apresentadas para representantes do Governo Federal, do CNE, do Congresso Nacional e de gestões estaduais e municipais.

– Apresentação à então gestão do Ministério da Educação de subsídios técnicos para o esforço de elaboração da Base Nacional Comum para Formação de Professores da Educação Básica, documento apresentado em dezembro de 2018 que deu embasamento à revisão das DCN promovida pelo CNE.

– Condução, em conjunto com o Itaú Social e o Ibope, de uma pesquisa quantitativa de opinião com professores de todo o Brasil, buscando entender a visão dos docentes brasileiros sobre diversos tópicos da Educação.

– Apoio ao fortalecimento do Movimento Profissão Docente, que tem contribuído substantivamente para o avanço de importantes medidas a nível federal e estadual, dentre elas as próprias DCN recém-aprovadas pelo CNE.

2019

– Apresentação das propostas sobre políticas docentes produzidas no Educação Já! para a nova gestão do Ministério da Educação, para deputados e senadores eleitos e para secretários de Educação de Estados e Municípios.

– Construção de um acordo de cooperação técnica com o Conselho Nacional de Educação (CNE) para, junto com o Movimento Profissão Docente, fornecer apoio técnico para as discussões a respeito de políticas docentes.

– Produção de estudos sobre a formação inicial de professores no Brasil, mostrando a expressiva elevação de cursos na modalidade a distância e de baixa qualidade (“Formação Inicial de Professores no Brasil”  e “A Expansão do ProUni EAD na Formação Inicial Docente”).

– Participação na audiência pública promovida pelo CNE a respeito das novas DCN. Nesta ocasião, reforçamos o apoio ao trabalho realizado pelo Conselho e apontamos sugestões de melhorias ao documento que foi colocado em consulta pública.

– Também em parceria com o Movimento Profissão Docente, envio ao CNE  de um documento técnico com sugestões de melhorias no parecer em discussão sobre a temática.