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Crianças e jovens: para 61% falta o básico. Inclusive Educação.

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O processo de crescimento do corpo humano é bastante complexo tanto física quanto emocionalmente: além da multiplicação de células e do aumento da capacidade cognitiva, a criança também deve se encaixar na família, no grupo de amigos e aprender a lidar com as relações sociais de maneira geral, inclusive no ambiente escolar. Como aluno ou aluna, deve atingir boas notas e superar as más, dar conta das tarefas pedagógicas, estabelecer laços com os colegas e professores e também descobrir, com o passar do tempo, o que quer ser quando crescer.. Ufa. Se essa travessia já é cheia de percalços para quem tem apoio social e familiar, imagine para quem não tem?

Imaginou? Pois eles são 6 em cada 10 crianças e adolescentes brasileiros – ou seja, 60% deles. O número assustador é de um levantamento do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) da Organização das Nações Unidas (ONU) divulgado neste ano, que chama a atenção para a situação de pobreza não apenas monetária, mas para a privação de direitos básicos em que vive grande parte da população infanto-juvenil no nosso País. O relatório tenta mandar uma mensagem: uma criança e seus direitos são inseparáveis.

Nesse sentido, a perspectiva de vulnerabilidade social do Unicef coloca no radar não só os 13,3 milhões de crianças e adolescentes que estão privados de saneamento básico e os 7,6 milhões que não têm acesso à água tratada, por exemplo, mas também os 8,8 milhões que não têm acesso à Educação de qualidade e no tempo adequado. O Unicef observa seis direitos básicos em sua análise (Educação, informação, água, saneamento, moradia e proteção contra o trabalho infantil) e aponta que, para se desenvolverem plenamente, crianças e adolescentes precisam de apoio multilateral e transversal.

E aí entram você e todo mundo. Criança sem saúde não aprende e sem nutrição, não é saudável. Da mesma maneira, ela sequer chegará a ser um/a adulto/a se não tiver água e esgoto tratados. Ou seja, tudo está entrelaçado e diferentes áreas do poder público e a sociedade devem atuar juntos para fortalecer essa rede. A convite do Todos Pela Educação, especialistas da área de saúde, nutrição e infraestrutura falam sobre a relação entre essas áreas e a Educação.

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A comunidade faz a força

A vulnerabilidade social está presente em todos os cantos do País e não seria diferente em São Paulo, maior capital brasileira. Parelheiros, bairro do extremo sul da capital paulista, vive situações gravíssimas. Apenas 36,75% dos moradores tinham acesso a esgoto tratado em 2016, segundo levantamento do Mapa da Desigualdade da Primeira Infância, da Rede Nossa São Paulo. O mesmo estudo revela ainda que a demora para a solicitação de vaga em Creche ser atendida chega a 165 dias, enquanto em Guaianazes esse tempo é de 22 dias. A dificuldade de acesso a esses direitos é acompanhada de outras situações de vulnerabilidade, como gravidez precoce, violência e mães solteiras com baixa renda.

São esses desafios que levam a enfermeira Flávia Kolchraiber a dizer que a vida na periferia tem seu lado “copo meio vazio”, e é a população local que tem de correr atrás para enchê-lo. É esse “corre” que a fez acreditar no potencial humano de Parelheiros. “Eles têm um potencial que chamamos de pontos luminosos, empreendimentos pequenos. É isso que tentamos incentivar. O lado cheio do copo é esse poder de criar com o coletivo”, pondera.

Há dois anos ela entrou para a equipe do Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário (Ibeac) e viu o sonho de impulsionar o bem-estar e desenvolvimento das crianças do local virar realidade no projeto “Mães Mobilizadoras”. “Nossa maior motivação é dar voz e, sobretudo, escutar essa população. É ver as pessoas inseridas com seus direitos humanos garantidos”, explica Flávia, que coordena o Centro de Excelência para Primeira Infância (CEPI), ligado ao Ibeac.

Para atingir a comunidade local, Flávia e sua equipe apostaram numa receita certa: a conversa de comadre. Foi por meio do bate-papo que o direito integral das crianças e temas relacionados à saúde e à Educação entraram em discussão nas famílias. Um dos assuntos pautados com a população local foi a importância de se ler para os bebês. “Nós convidamos parceiros para sensibilizar e informar as ‘mães mobilizadoras’ e elas saem discutindo o assunto com a comunidade no dia-a-dia. Vimos o efeito quando as mães observaram e relataram que os filhos tinham melhor desempenho de leitura após o começo da alfabetização”.

Educação, saúde e nutrição, parceria acertada

A percepção das mães de Parelheiros tem respaldo científico. A Dra. Maria Paula de Albuquerque, gerente clínica do Centro de Recuperação e Educação Nutricional (CREN), explica que o desenvolvimento cognitivo (fortemente ligado ao desempenho escolar) começa desde a vida intrauterina. Nesse sentido, ela destaca ainda outro fator importante: o aleitamento materno. “Crianças subnutridas têm baixa estatura nos primeiros cinco anos e menor rendimento escolar. E os benefícios não são apenas individuais. Há estudos mostrando que a cada 1 dólar investido em aleitamento materno, 35 dólares são recebidos de volta pela sociedade”, pondera.

Para a especialista, não dá para pensar em política pública para a infância se as secretarias de Educação e Saúde não conversarem – e a nutrição tem tudo a ver com isso. “O cardápio escolar precisa ser revisto e o sobrepeso dos professores, por exemplo, ser debatido. Segurança alimentar e alimentação saudável têm que fazer sentido para toda a comunidade escolar”, afirma.

Infraestrutura dentro e fora da escola

Outro aspecto do qual a aprendizagem infantil não se separa é a infraestrutura. “A escola deve dar as condições mínimas, como saneamento básico e água tratada, para garantir o aprendizado do aluno. Precisa priorizar o atendimento das crianças que mais necessitam. É uma política de compensação”, defende a pesquisadora em infraestrutura escolar e professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Maria Teresa Gonzaga. Ela justifica que há uma correlação positiva entre o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) e a oferta mínima da infraestrutura.

No entanto, a escola não pode pagar a conta da insuficiência dos serviços sociais sozinha, pois ela depende de políticas públicas exteriores. Esgotamento sanitário, por exemplo, não depende das escolas e o número de unidades públicas que oferecem esse item é alarmante: apenas 39%, segundo dados do Observatório do PNE. Por isso, a pasta de Educação e as demais devem andar juntas. “As escolas refletem a qualidade da política que atende a toda a sociedade”, explica Maria Teresa.

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Ciclo virtuoso

A mobilização pelas crianças, seja na frente de saúde, aprendizagem ou infraestrutura, é como um rastilho de pólvora: basta uma fagulha e ela incendeia! Flávia conta que as mães atingidas pelas ações do Mães Mobilizadoras despertaram para o valor da Educação. Quatro delas voltaram a estudar para completar o Ensino Médio e outras quatro começaram a faculdade de Pedagogia. “Elas entendem que aqui é um centro de excelência e que é possível oferecer o melhor para a comunidade”, afirma Flávia.