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“O esforço até conta na Educação, mas a oportunidade define”, afirma Thaianne Santos, estudante universitária

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O Brasil vem avançando na Educação, mas a baixa aprendizagem escolar persiste, negando oportunidades aos jovens, especialmente os de contextos mais vulneráveis, é o que aponta o recorte especial sobre as juventudes do Índice Nacional de Alfabetismo Funcional (INAF) 2018. De acordo com a pesquisa, apesar de o analfabetismo funcional entre a população jovem estar caindo expressivamente desde 2003, a quantidade dos que atingem a alfabetização consolidada ainda está muito aquém do esperado.

Traduzidos para a vida real, os resultados demonstram que o direito de aprender ainda não é para todos. “Sou a primeira de minha família a cursar o Ensino Superior e uma das poucas da minha região. Existem pessoas até muito melhores do que eu, mas que não tiveram as mesmas oportunidades. Por isso, eu sempre falo que o esforço até conta, mas a oportunidade define. Há aqueles que mesmo sendo muito esforçados não conseguirão ter a oportunidade que estou tendo”, critica Thaianne dos Santos, 20, estudantes de ciências biológicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Egressa do sistema público de ensino do Rio de Janeiro, Thaiane compartilhou as narrativas vividas na periferia e debateu os dados apresentados no 2° Ciclo de Debates sobre Analfabetismo promovido pelo Todos Pela Educação e pela instituição Conhecimento Social. Ao lado dela estiveram também Helena Abramo, pesquisadora e consultora nos temas de juventude, e João Alegria, gerente geral do Canal Futura.

A jovem destaca que os números do INAF contam histórias de vidas reais com as quais ela conviveu – histórias de exclusão. “A pessoa não tem tempo de se preocupar com textos quando ouve a mãe falando de contas, do aluguel, do gás. Então não se trata apenas de ter vontade de querer ou não aprender. Para aprender você precisa ter tempo, condições minimamente adequadas”, pontua.

A pesquisa mostra que, para muitos, tais condições necessárias não têm sido ofertadas. Entre os jovens de 15 a 24 anos que cursaram até o Ensino Fundamental, 48% tem alfabetismo em nível elementar; no caso daqueles que concluíram o Ensino Médio, 39% estão nessa categoria, e entre os que têm Educação Superior a taxa é de 20%. Ou seja, uma grande quantidade de jovens têm dificuldades em aspectos essenciais para prosseguir na trajetória escolar e participar criticamente do mundo, por exemplo, eles não sabem localizar informação específica em textos formais, como reportagens.

“Os números mostram o esforço da política pública em universalizar o acesso à Educação, mas sem garantir a qualidade com igualdade para todos”, analisa Helena. “No entanto, também apontam um aspecto positivo: a aposta que os jovens e suas famílias têm feito na Educação. A ideia de que todo mundo precisa estudar está se disseminando, agora, se eles conseguem realizar o percurso até o fim e com qualidade é outra história”, pondera a pesquisadora.

+++3 EM CADA 10 BRASILEIROS NÃO CONSEGUEM ENTENDER ESTE TEXTO

Para Ana Lima, coordenadora do estudo, os números indicam que é necessário maior esforço da escola e de outros setores para fazer com que os jovens atinjam o nível de alfabetização plena. “Essa é a população que tomará as decisões nos próximos anos e o fará a partir dessas capacidades! Quem quer ter apenas uma parte da população sabendo ler daqui a  20 anos? Como é que essas pessoas se posicionarão no mercado de trabalho, inovarão em ciências e tomarão decisões importantes para a sociedade?”, questiona Ana.

João também acredita que é preciso impulsionar a aprendizagem dos adolescentes e jovens, especialmente nas escolas que atendem crianças e jovens expostos à vulnerabilidade social. Além disso, João – que soma 40 anos na docência e 20 dedicados à comunicação focada em juventudes e Educação – considera o diálogo com os adolescentes e jovens tão importante quanto aumentar o investimento na Educação.

Na entrevista a seguir ele comenta os impactos de uma alfabetização insuficiente na vida dos jovens. Veja.

Todos: Segundo o Inaf 2018, 14% dos jovens entre 15 e 24 anos são classificados como analfabetos funcionais. Quais são as consequências disso para autonomia e cidadania desses jovens?

João: Baixa fluência e falta de capacidade para compreensão e expressão nos diferentes linguagens produz exclusão. Quando pensamos em alfabetismo/alfabetização, sempre nos ocorre a capacidade de ler, escrever, compreender operações matemáticas, entender um gráfico ou dado no jornal. Mas, na verdade, é importante ampliarmos essa ideia de analfabetismo funcional, uma vez que vivemos num mundo em que há expansão das possibilidades de comunicação, com a presença de diferentes linguagens, como a audiovisual e a computacional, por exemplo.

É também necessário entender que no mundo atual de cultura digital, no qual a importância da comunicação para o pleno exercício da cidadania é determinante, qualquer traço de analfabetismo produz perda de direitos, desconexão com oportunidades de trabalho, baixo rendimento escolar – isto é, uma cadeia de consequências maléficas.

Apenas 59% dos jovens terminam o Ensino Médio até os 19 anos. Quais são as causas para tanta evasão?  

Um fenômeno cruel no Brasil é a desigualdade no acesso escolar. Essa diferença é um grande desmotivador para o jovem. Além disso, a escola perdeu a capacidade de dialogar com o mundo a seu redor. Ela não consegue conversar de igual para igual com o contexto social em que está inserida, parece que está atrasada em relação ao mundo. Claro, a escola ainda é a instituição que a sociedade escolheu para cuidar da maior parte da Educação das novas gerações, mas ela está dessincronizada do presente.

Assim, para o jovem, a escola parece não fazer sentido. Esse jovem está sujeito a diversas pressões sociais fora da escola e quando entra nela, a sensação é a de ter sido transportado para outro tempo, para uma instituição que não consegue dar respostas a todas essas pressões.

Outro aspecto relevante para refletirmos sobre a evasão é o contexto social brasileiro que contribui para que os jovens não fiquem ou não aproveitem o tempo na escola. Existem muitas variáveis, como a injustiça social, a necessidade de trabalhar desde cedo e compromissos não planejados, como por exemplo, ter um filho na adolescência. Esses são fatores extra-escolares que também contribuem para que o jovem abandone a escola.

Como a falta de escolaridade pode afetar a autonomia e cidadania desse jovem no futuro?

A consequência  é quase irrecuperável. Eles não conseguirão bons empregos, não conseguirão ter realização pessoal, pois não tiveram acesso a um repertório de informações e cultura que lhes permita encontrar um projeto de vida. Além das consequências pessoais, há ainda um conjunto de impactos na sociedade brasileira. Estamos em um momento de bônus demográfico – quando a população jovem e produtividade de um País é a maior fatia da população. Esse é um momento para formar e capacitar os jovens. Na medida em que não damos conta de garantir uma correta Educação para todos eles, estamos apontando para um futuro de miséria, dependência e muitas consequências sociais logo à frente.  

O INAF 2018 mostra que 23% dos brancos são analfabetos funcionais, índice que cresce para 30% entre pardos e chega a 35% entre pretos. O que precisamos mudar na Educação Básica para combater essa injustiça e qual o papel da Educação nesse combate?

Precisamos promover correções sociais que só são possíveis com políticas públicas afirmativas. No Brasil, as pessoas mais expostas à vulnerabilidade social recebem uma Educação pior. Isso só pode ser modificado ao identificarmos essas populações e investirmos fortemente na escola de quem mais precisa. É claro que o Estado, apoiado pela sociedade, deve liderar tais ações. No entanto, a responsabilidade dessa causa é de todos que estiverem dispostos a contribuir, e não apenas do setor público.

Ou seja, o ponto é equiparar oportunidades. Assim, jovens de qualquer etnia poderão chegar diante das oportunidades em condição de igualdade e aproveitá-las. Por princípio, não há pessoa incapaz de aprender ou menos inteligente que outros, fato largamente comprovado por pesquisas. O que ocorre é que as pessoas enfrentam diferenças em relação ao acesso àquilo que é necessário para aprender, o que vai desde uma boa escola até uma boa situação familiar.

De que forma ter acesso à Educação de qualidade e chegar à juventude plenamente alfabetizado tem efeito positivo na vida de jovens em contexto de violência e periferia? Ajuda na resiliência e autoestima dessa população?

Sim, a Educação ajuda. Uma boa forma de enxergarmos resultados positivos é observarmos alguns coletivos sociais de jovens, que trabalham de forma paralela ao Estado na tentativa de construir oportunidades educacionais para quem está exposto à situação de vulnerabilidade. É o caso de cursinhos comunitários, organizações de formação profissional comunitária e incubadoras de negócios de jovens. Ao ver esse movimento, percebemos claramente que, se mais jovens tivessem oportunidade à uma Educação adequada, estaríamos em outra situação social.

Diante desse cenário,  o que deve ser prioridade nas políticas educacionais brasileiras?

Temos investido muito dinheiro em Educação Pública, mas precisamos melhorar a gestão desses recursos. Além disso, é necessário consciência por parte do corpo político e social de que é preciso estabelecer políticas públicas afirmativas e implementá-las seriamente. Não adianta um belo conjunto de metas se os gestores e legisladores não as colam na tela do computador, não observam isso permanentemente, levando-as a sério. É fundamental haver um compromisso real e profundo com uma gestão mais técnica da Educação.

Outro ponto a ser levado em consideração é o diálogo com os jovens. Eles têm sido pouco ouvidos a respeito da Educação que é feita para eles; porém, eles precisam ser co-protagonistas do processo de seu ensino. Os jovens não são “café-com-leite”, para ouvir de mentirinha e depois esquecer o que foi dito. Eles têm capacidade de atuação econômica, social e cultural importante. É preciso ter coragem de dar esse passo e incluí-los nas tomadas de decisão e gestão da Educação que eles recebem. Fazer isso é tão fundamental quanto garantir o dinheiro dedicado à Educação.