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“O combate ao racismo é uma luta de todos”, diz José Vicente

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Embora a população negra seja maioria no Brasil, ela possui menos anos de estudos em comparação aos brancos, de acordo com o Anuário da Educação Básica 2018. Além disso, os negros e negras também chegam em menor proporção ao fim da trajetória escolar com a idade adequada.

Para o doutor em Educação e reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares José Vicente, entender que o racismo existe no Brasil não é suficiente. É preciso agir: debater o assunto e apostar em ações práticas que revertam a histórica desigualdade racial brasileira em justiça. Esse objetivo, segundo ele, não pode nem deve ser uma pauta apenas dos negros. “Passar o racismo a limpo”, como defende o educador, requer que as ações afirmativas sejam mais do que apenas as cotas étnico-raciais nas universidades públicas.

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Abaixo, confira a entrevista completa.

Todos: O acesso a uma Educação de qualidade ainda é muito desigual no Brasil. Enquanto brancos estudam em média 12,1 anos, pretos e pardos estudam 10,8.  Como isso se relaciona ao racismo? Podemos falar em racismo institucional e estrutural na Educação Básica?

José Vicente: O racismo institucional [normas, práticas e discriminações diversas em instituições] se desenvolve em olhares e atitudes de não reconhecimento. Nesse sentido, as relações sociais brasileiras sempre foram contaminadas pela escravidão, diante da concepção de que há cidadãos de primeira e segunda classe. Devido a essa perspectiva, que trata um como superior ao outro, ainda não alcançamos uma Educação igualitária.

Esse olhar de hierarquização produz uma distorção sobre o racismo. Se não houver reconhecimento de que há racismo, de que suas nuances produzem desigualdades e, por conta disso, não for produzido nenhum mecanismo para intervir nesse quadro, não será possível ter a igualdade de oportunidades pretendida em nenhuma área.

A desigualdade educacional está dentro dessa lógica e é produto de um contexto de racismo também estrutural [isto é, faz  parte da própria estruturação social]. Melhoramos a escolaridade no geral, mas não combatemos a diferença entre brancos e negros porque não debatemos a razão dessa desigualdade existir. Para mudar esse quadro, precisamos combater o racismo e construir possibilidades que garantam igualdade de oportunidades.

Por que, mesmo diante de acesso e trajetórias desiguais entre negros e brancos na Educação Básica, ainda existe resistência às cotas na Educação Superior?

Porque nunca nos interessamos em pensar o histórico da desigualdade de oportunidades no Brasil. O senso de justiça e de igualdade que permeia nossos fundamentos constitucionais são mais conceitos jurídicos bonitos do que entendimentos construídos em cima da história do nosso País. Importamos o linguajar do primeiro mundo, de que “a igualdade se faz por meio de Estado Democrático de Direito e de que todos são iguais perante a lei”, mas não podemos colocá-lo em prática, pois é impossível cumprir isso sem fazer os ajustes de contas com a história.

Reconhecer essa realidade se traduz em criar e implementar políticas públicas específicas para parte da população; no entanto, a atitude de muitos é dizer “deixa como está e vamos ver como é que fica”. Em grande medida, repetimos apenas de forma simbólica e abstrata os dois artigos da Lei Áurea – “está abolida a escravidão a partir desta data e se revoga a disposições em contrário” -, sem que, contudo, alcancemos o ideário de justiça e pluralidade da Constituição.

Qual é a sua avaliação da aplicação das cotas até o momento no Brasil?

É algo novo no cenário brasileiro e tem uma funcionalidade. Apesar disso, é muito pouco diante da demanda. Não se resolve a desigualdade com cotas de 20% quando a sociedade é composta por mais de 50% de negros.

Outro aspecto a ser levado em conta é que as cotas são ações pontuais e impulsionadoras para responder às desigualdades. Ao pararmos nas cotas, não fomos capazes de resolver o drama do “apartheid racial” brasileiro. Diante do desafio que temos, as cotas são e foram uma medida mínima que parou na sua minimidade. Mas o ponto positivo desse tipo de ação foi ter levado a discussão além da ideia de democracia racial.

Ter cotas do Ensino Superior das universidades ao Exército são medidas de otimismo; são uma ponte para a mudança. Mas sem ir além das cotas perderemos a oportunidade histórica de construir, no presente, um futuro melhor.

O que podemos fazer para que a pauta da Consciência Negra não fique apenas no dia 20 de Novembro?

Precisamos de duas compreensões. Primeiro, entender que o combate à discriminação racial não foi, não é e jamais será uma responsabilidade apenas dos negros. É uma luta de todo cidadão e todas as instituições. Porque o racismo produz malefícios e danos para toda nação.

Segundo, devemos ter disposição e determinação de passar o racismo a limpo. O assunto tem de ser conhecido, debatido e combatido. Apenas com o conhecimento das consequências do racismo poderemos construir uma sociedade livre. É assim que cumpriremos o objetivo constitucional de uma pátria livre, justa, plural e diversa, em que a dignidade da pessoa seja respeitada pelo Estado e por todos os brasileiros.

Sem isso, continuaremos na utopia de que é possível caminhar sozinho quando a vida exige que estejamos sempre juntos. Sem isso, continuaremos em uma sociedade imperfeita que não produzirá justiça, pacificidade e coesão social.

+++NÚMEROS QUE CONTAM HISTÓRIAS: CULTURA AFRO-BRASILEIRA NA MATEMÁTICA