Nesta edição do “Diálogos com Todos”, conversamos com Helton Souto Lima, cofundador, presidente e líder do círculo Articulação Política do Instituto DACOR – Dados Contra o Racismo, uma das organizações que estão conosco na coalizão Educação Já Municípios. Confira suas reflexões sobre Educação Antirracista, desigualdades e muito mais, logo abaixo.
*“Diálogos com Todos” é um espaço onde entrevistamos uma diversidade de parceiros, especialistas e profissionais da educação sobre temáticas conectadas ao nosso advocacy pela Educação Básica Pública.
1) A desigualdade racial ainda aflige a Educação Básica desde o acesso, passando pela aprendizagem até a conclusão. Já considerando a Lei nº 10.639/2003 e mais recentemente a PNEERQ (Política Nacional de Equidade, Educação para as Relações Étnico-Raciais e Educação Escolar Quilombola), como implementar de maneira efetiva e transformadora uma educação antirracista no Brasil?
Quando falamos de desigualdade racial na educação, estamos falando da ausência do direito que precisa ser assegurado a todas as crianças, adolescentes e jovens que é uma aprendizagem verdadeiramente de qualidade que lhes favoreça no seu desenvolvimento integral. Mas quando, por exemplo, 24% dos adolescentes brancos matriculados nos anos finais do Ensino Fundamental atingem o nível adequado de aprendizagem em Matemática e esse número cai para 10,7% entre os adolescentes pretos, estamos diante de uma tragédia. Então, até mesmo essa educação que precisa melhorar sua qualidade para todos ainda não é plenamente acessada por mais de 25 milhões de adolescentes que representam o número de matriculados no Ensino Fundamental.
A discussão fica mais preocupante quando ressaltamos que o Brasil tem marcos legais avançados como as leis 10.639/03, mais recente a lei 11.645/08 e uma política nacional indutora como a PNEERQ (Política Nacional de Equidade, Educação para as Relações Étnico-Raciais e Educação Escolar Quilombola), mas precisaremos potencializar e qualificar a implementação dessas iniciativas tão importantes e necessárias. A PNEERQ conta hoje com uma adesão de 97% das redes de ensino em todo território nacional. Apoiar o fortalecimento e implementação dessa política – lançada em maio de 2024 – é uma tarefa de todas as secretarias de educação, dos órgãos de controle e participação social e do ecossistema de educação existente na sociedade civil. Qualificar essa implementação significa não se contentar em desenvolver ações pontuais, isoladas no tempo e sem a devida articulação e integração com políticas educacionais mais abrangentes. Quando falamos em políticas sistêmicas, pensamos elas articuladas por eixos como: qualificar os currículos para que eles estejam alinhados com as leis 10.639 e 11.645; ter uma estrutura de coleta, análise e tomada de decisões com base em dados racializados dos estudantes; oferecer formação continuada a gestores e professores para que possam se qualificar cada vez mais sobre as relações étnico-raciais na educação; ampliar as possibilidade de representatividade, criando condições para que haja, especialmente nos cargos de liderança na educação, mais pessoas negras, indígenas e quilombolas; fomentar a vontade política de decisores e instituições para que a equidade racial na educação assuma centralidade nas priorizações de administrações e governos.
E as redes precisam de apoio para isso. No Instituto DACOR, desenvolvemos ferramentas para apoiar redes de ensino nesse tipo de diagnóstico para orientar e qualificar a implementação de políticas nessa direção descrita aqui. Desde 2023, aplicamos esse diagnóstico em 80 redes de ensino e identificamos que 56% delas realizavam ações ainda pontuais e pouco efetivas, 37% realizavam ações menos pontuais, mas ainda assim menos estruturantes e apenas 6,3% das redes desenvolviam ações mais regulares, consistentes e com maior possibilidade de atingir resultados.
É importante também pensarmos que estamos vivendo um momento de janelas de oportunidade na educação para que a integração da agenda racial às políticas educacionais aconteça de maneira mais efetiva como, por exemplo: revisão do Plano Nacional de Educação (PNE), criação do Sistema Nacional de Educação (SNE), política nacional de formação de professores em discussão, revisão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC); as discussões em torno de revisão de SAEB e IDEB. Isso demanda de nós a importância de fomento ao debate de modo que não percamos essas oportunidades de colocar a agenda racial e a redução de desigualdades raciais no centro da educação.
2) Nesse sentido, qual o papel de professores e gestores para fazer da escola um ambiente antirracista, acolhedor e pautado pela equidade?
As escolas, por meio das orientações e diretrizes de políticas educacionais, precisam estar comprometidas com assegurar o direito de aprendizagem e de desenvolvimento integral de todos os estudantes. Portanto, é de fundamental importância que a escola implemente mecanismos para que esse desenvolvimento possa acontecer. Combinada com o direito ao aprendizado, é importante também que a escola seja um espaço institucional seguro para crianças, adolescentes e jovens expressarem e exercerem sua potencialidade, sua liberdade de ser quem são e o potencial que possuem como pessoas, estudantes, cidadãos e futuros profissionais. A questão é que para crianças, adolescentes e jovens negros a escola não tem sido esse espaço. E precisa ser. Vejam que os próprios estudantes, em escolas de maioria negra, revelam essa necessidade ao demandar – na pesquisa Escuta das Adolescências, realizada em 2023 e que incluímos em nosso Mapa de Dados – que o currículo contemple mais discussões e conteúdos sobre direitos humanos, sobre o combate ao racismo e políticas de convivência dentro da escola.
Nesse sentido o papel de professores e gestores é fundamental porque uma escola que caminha nessa direção é um lugar bom e de desenvolvimento e potencialização para todos e todas que nela atuam. Professores e gestores são pessoas zeladoras para que isso aconteça. As escolas são lugares de inteligência e a expressão disso é a atuação de professores e gestores e, por essa razão, precisam ser cada vez mais letrados racialmente, conhecerem os marcos legais que falamos aqui anteriormente, entendam como se dá a expressão das desigualdades raciais no país e o papel da escola no enfrentamento desse desafio e precisam ser respeitados em sua atuação, terem também seus direitos assegurados para que exerçam suas responsabilidades também de maneira integral.
3) O Instituto DACOR disponibiliza o Mapa de Dados, uma ferramenta potente que torna o conhecimento sobre desigualdades raciais mais próximo, compreensível e acionável. Como o conhecimento sobre esses dados fomenta o avanço de políticas educacionais antirracistas?
O Mapa de Dados, do Instituto DACOR, parte de uma premissa que é a necessidade de pensar as diferentes manifestações da desigualdade racial e como elas fazem parte da vida de adolescentes negros. Isso é mostrado e discutido a partir da análise de dados que dialogam, por exemplo, com educação, violência, perspectivas de futuro desses adolescentes de modo que possamos abordar isso de uma forma sistêmica e cuidar dessas diferentes faces para aprofundar análises e, especialmente, tomadas de decisão.
Entendemos que a disseminação desse tipo de informação e conhecimento pode potencializar tomadas de decisão que gerem mudanças efetivas. Por isso, queremos que o Mapa seja uma plataforma viva, que agregue outras tantas informações e dados ao longo do tempo, que permita análises ainda mais aprofundadas. O Mapa de Dados guarda o nosso desejo para que essas informações sobre a adolescência negra – que hoje estão sendo mostradas em aspectos tão negativos – possam ser transformadas com o tempo de maneira positiva. Queremos ver essa transformação acontecer e que ela possa ser dimensionada por meio de dados e evidências.
4) Levantamento do Observatório da Branquitude mostra que 100% das escolas negras em piores condições não dispõem de coleta de lixo ou rede de esgoto. Muitas ainda enfrentam instabilidade nesses serviços básicos, o que amplia o risco de contaminação hídrica após enchentes e reduz a capacidade das escolas de resistir aos impactos da crise climática. É o racismo ambiental contribuindo, também, para as desigualdades educacionais. Quais os principais pontos de atenção para este debate?
É muito importante que possamos identificar as mais diferentes formas de manifestação do racismo estrutural e das desigualdades raciais na educação. O desafio é que as desigualdades raciais na aprendizagem dos estudantes negros não pode ser entendida como algo isolado. Há outras tantas desigualdades se processando nesses contextos.
Não é por acaso que trouxemos no Mapa de Dados, a informação de que um adolescente negro tem 3,1 vezes mais chance de sofrer morte violenta na comparação com um estudante branco na mesma idade. Vejam, precisamos falar de direito à aprendizagem e também falar de um direito primordial que é o direito à vida. Os dados do Observatório da Branquitude que tratam, por exemplo, da infraestrutura das escolas e vai indicar que as escolas de maioria negra são as que têm as piores condições são mais uma evidência de como essa desigualdade se processa. E vejam como isso está relacionado ao Índice de Racismo Ambiental (IRA) que criamos com a Unesp de Sorocaba. Ali, olhamos para as populações parcializadas em 5 regiões metropolitanas do país e cruzamos esses dados com acesso à infraestrutura de água, esgoto e condições de moradia. O que identificamos é que quanto maior a população negra no território, menores são os acessos a saneamento básico e condições ideais de moradia. Potencialmente, estamos falando de onde esses estudantes moram e vivem. A pesquisa do Observatório da Branquitude vai tratar de onde eles estudam. E essas informações se cruzam para dar conta de entendermos um racismo estrutural e sistêmico que, no final das contas, age e compromete a vida e as trajetórias de populações inteiras numa lógica violenta e brutal. E estamos falando de pessoas. Pessoas na plenitude de suas idades e momentos de vida, das suas capacidades e possibilidades, de crianças, adolescentes e jovens com todos os seus desejos, potenciais, vontades, projetos de futuro, sonhos que todos têm o direito de ter. São sonhos, projetos e direitos que estão comprometidos se, como sociedade, deixarmos novamente de tomar as decisões necessárias. E precisamos falar mais sobre isso, debater mais, criar mais. Precisamos ter cada vez mais acesso a dados, conhecimentos e evidências, mas, sem dúvida alguma, precisamos agir dentro de nossos âmbitos de atuação para que realidades como essas possam ser modificadas.