Terça-feira, uma fila – jovens adultos, em sua maioria – ladeia o prédio adjacente à Igreja Nossa Senhora da Paz, no número 225 da Rua do Glicério, região central de São Paulo. São 9 horas da manhã e as aulas estão prestes a começar. Tudo para ouvir a professora dos imigrantes ensinar.
À frente do quadro negro, a professora Rosane de Sá Amado se apresenta e explica, em um português bem pausado, o tema da aula 3 do curso básico de língua portuguesa: tempo e clima, assunto essencial para o cotidiano de imigrantes de origem latina e africana, principal público assistido pela Organização Não-Governamental (ONG) Missão Paz, que funciona no local.
Estranha à cultura local, a população de imigrantes enfrenta muitas barreiras para se integrar à sociedade brasileira, obstáculos que começam pela língua, de sons e escrita insólitos para a maioria dos alunos. “Muitas famílias de imigrantes sírias, por exemplo, desembarcam apenas com as mochilas, sem saber falar nada de português. Os funcionários do aeroporto ligam para alguma ONG avisando pra ir buscá-las”, conta a professora.
Garantir aos estrangeiros pelo menos o mínimo de comunicação na língua portuguesa faz parte de uma recepção humanitária, defende Rosane. “Desde o século 19, o Brasil não tem ensino de português como língua estrangeria para imigrantes. Eles sempre precisaram criar as próprias escolas. E hoje pouco mudou. Não há uma politica linguística de acolhimento aos estrangeiros e refugiados”, lamenta.
Aos 44 anos, Rosane acumula 21 anos entre pesquisa acadêmica e carreira docente, combinando as duas atividades que mais lhe dão prazer: ensinar e estudar línguas. No ano passado, as atividades ganharam uma nova dimensão, quando ela aceitou o desafio de ensinar “o mistério”– como colocaria Drummond – da língua portuguesa escrita e falada para estrangeiros e refugiados.
Basta observá-la atuando para comprovar o entusiasmo da docente. Em intervalos de não mais de 3 minutos, Rosane sorri. “Não dá para descrever o prazer que é dar aula para eles”, ela conta. “Todo final de aula é aquele ‘obrigado’ carregado de gratidão”.
No lado oposto da sala de aula, quinze adultos e dois adolescentes observam a professora com curiosidade e interesse. Dividem o espaço, sete nacionalidades diferentes: Congo, Colômbia, Haiti, Nigéria, Equador, África do Sul e Senegal. Países cuja “famosa hospitalidade brasileira”, acredita Rosane, não abraça. “A gente acolhe do hemisfério norte pra cima. Essas são populações em vulnerabilidade social e marginalizadas, para quem as pessoas olham dizendo ‘vão roubar nossos empregos’”, critica. Em janeiro de 2015, o número de imigrantes originários da África, América do Sul e Oriente Médio em São Paulo era de 120.452, segundo dados do Departamento da Polícia Federal.
Na contramão do preconceito, Rosane age em sala de aula como uma anfitriã, compartilhando impressões culturais com a turma e indagando sobre as peculiaridades das línguas maternas dos estudantes. São cinco, por sinal: créole (língua comum no Haiti, fusão entre um dialeto e o francês), francês, inglês, espanhol e quíchua (língua indígena falada por alguns povos da América do Sul).
“Tento trabalhar com eles a interculturalidade voltada às línguas”, explica Rosane. “Pergunto a respeito das impressões antes e depois de chegar ao Brasil e também falamos deles. Conversamos sobre o que trazem de sua cultura, não sobre os aspectos trágicos da imigração”.
Apesar de alguma confusão inicial naquilo que parece uma pequena torre de babel, aos poucos os alunos estrangeiros ficam mais soltos, menos tímidos. Animados, eles repetem, de tempos em tempos, os meses e dias da semana em português, uns para os outros. Os anglófonos enfrentam as maiores dificuldades, mas não sem a ajuda dos falantes espanhóis, os mais comunicativos.
Solidariedade essa, que também ensina lições à Rosane. “No semestre passado, um senhor sírio de 60 e poucos anos apareceu no meio de uma aula do intermediário. Ele participou bastante e, no final, veio até mim e disse: quando você quiser cortar o cabelo, me avise, porque eu sou cabeleireiro e cortarei seu cabelo de graça”, conta emocionada.
Sopa de letrinhas
Doutora em linguística, Rosane se empolga ao falar sobre sua atividade. “Eu gosto muito de ser professora e tenho paixão pelas línguas e pela linguística. Gosto de descobrir os padrões e estruturas e compará-los; quase como matemática”, sorri.
Por línguas a professora quer dizer os vários códigos de linguagem que já passaram por sua vida. Uma história com início na adolescência, quando ela revelou à família – de taxistas – que prestaria vestibular para o curso de Letras; e não em qualquer habilitação, mas em português-árabe.
“Eu era obcecada por essa região, guardava vários recortes sobre o assunto e me imaginava prestando algum serviço assistencial em lugares de conflito no Oriente Médio”. Sem muita vontade de ser professora, foi na licenciatura que ela percebeu que “ensinar poderia ser legal”, como recorda. Durante dois anos, Rosane deu aulas de inglês e português na rede estadual de ensino, além das aulas particulares de inglês.
Mais tarde, os interesses rumaram por outros caminhos. Para o mestrado e o doutorado, a educadora se propôs o desafio de cunhar a primeira estrutura escrita da língua Pykobjê, falada pelo povo homônimo pertencente à raiz Timbira. “Quando eu comparava a estrutura da língua deles ao português e mostrava os verbos, por exemplo, eles ficavam encantados. Quando eu terminei o mestrado, levei um exemplar da dissertação para cada aldeia”, conta. Ela explica a diferença de lecionar para perfis tão diferentes quanto os indígenas e os estrangeiros. “Apesar de ambos terem em comum a vulnerabilidade e a marginalização, há uma particularidade para os primeiros que é o letramento. Os indígenas têm uma cultura oral. Portanto, eles têm que fazer dois movimentos para aprender o português: o escrito formal e o oral informal”, explica a docente.
Em 2004, ela entrou para o quadro de docentes da Universidade de São Paulo (USP), na área de Filologia e Língua Portuguesa. E, em 2014, surgiu a oportunidade de concretizar o interesse da adolescência: prestar assistência às populações vulneráveis. “Literalmente, se Maomé não vai à montanha, a montanha vem a Maomé”, brinca fazendo referência aos estrangeiros oriundos do Oriente Médio, para quem leciona em outra ONG, a Associação Oásis Solidário. “Começamos tateando mesmo, com salas lotadas e nada esquematizado”, afirma.
E os desafios estão apenas no começo: faltam professores, a evasão dos alunos é grande e as iniciativas na área ainda são descoordenadas e predominantemente do terceiro setor. Mas nada disso assusta Rosane. Neste ano, ela transformou o que era trabalho voluntário em um projeto de cultura e extensão do curso da USP, angariando cinco bolsas para alunos que queiram atuar como professores para estrangeiros nas ONGs. Há muito por fazer, porém, a docente já ganhou seu quinhão. “Eu lecionei para muitos grupos, mas nunca me senti tão realizada como agora”, garante.